A democracia não é somente um conjunto de garantias institucionais, uma liberdade negativa. Ela é a luta de sujeitos, na sua cultura e na sua liberdade, contra a lógica dominadora dos sistemas. (...) O que define a democracia não é, pois, apenas um conjunto de garantias institucionais ou o reino da maioria, mas sobretudo o respeito dos direitos individuais e coletivos, que combinem a afirmação de uma liberdade pessoal com o direito de ser identificado com uma coletividade social, nacional ou religiosa particular. (...) A igualdade, para ser democrática, deve significar o direito de cada um escolher e governar a sua própria existência, o direito à individuação contra todas as pressões que se se exercem a favor da moralização e da normalização (TOURAINE, 1999, p. 22, 24 e 25).
Nossa sociedade passa por um processo de transformação, modernização e globalização que se relaciona, direta e indiretamente, com as questões sociais e econômicas contemporâneas. Os avanços tecnológicos e as quebras de barreiras entre países têm permitido o enfrentamento de diversas questões e a ampliação de riquezas, isso ocorre ao mesmo tempo em que a difusão das tecnologias da informação, da internet e das redes sociais impulsionam mudanças em todo o mundo. É certo ainda afirmar que as políticas públicas implementadas pelos países tiveram um papel significante nos processos de redução das desigualdades no século XX (PIKETTY, 2014) (1). Entretanto, em que pesem todas essas mudanças e os avanços por elas proporcionados, ainda observamos notícias de discriminações, violação de liberdades, violência, fome e recrudescimento democrático que nos impelem a lidar cotidianamente com essa situação.
O Brasil, na última década, assumiu posto de uma das grandes economias mundiais, entretanto os avanços observados na esfera econômica não se reverteram, na mesma medida, em melhorias da qualidade de vida da população, na consolidação de um Estado de bem-estar social e no aprofundamento democrático. Registram-se ainda indicadores de alta desigualdade na população brasileira, haja vista dados recentes do IDH - Índice de Desenvolvimento Humano (2018) que colocam o Brasil na 79ª posição, ainda que possua o 9° maior produto interno bruto (PIB) do mundo. Outros dados são importantes de serem trazidos aqui, tais como: (a) um quarto da população brasileira, 52,7 milhões de pessoas, vive em situação de pobreza ou extrema pobreza; (b) cerca de 2 milhões de crianças e jovens estão fora das escolas no Brasil, segundo o Unicef; (c) dados da Agência Senado, apontam que: “quase 35 milhões de pessoas no Brasil vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto, resultando em doenças que poderiam ser evitadas, e que podem levar à morte por contaminação.”; (d) dados do INEP apontam que são 5,2 mil escolas sem banheiros (3,78%); 8,1 mil (5,84%) sem acesso à água potável e 7,6 mil (5,53%) sem serviços de esgoto. Outros 3,5 mil (2,59%) seriam estabelecimentos de ensino que não dispõem de qualquer tipo de abastecimento de água.
No que tange à democracia, o Brasil consolidou os fundamentos democráticos após o fim do regime militar e a promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja nossa democracia é recente. E um dos desafios atuais é radicalizar a democracia, indo além da democracia representativa, sem negá-la, mas coexistindo e complementando-a com maior participação cidadã e engajamento cívico e político de todos os cidadãos em todas as etapas do processo decisório (SANTOS, AVRITZER, 2009) (2).
Entretanto, resta-nos uma grande reflexão a ser aqui pontuada: de que modo podemos radicalizar a democracia considerando as desigualdades sociais que marcam nossa sociedade?
Grosso modo, poderíamos definir democracia, a partir de alguns elementos, como: equilíbrio entre igualdade e liberdade, liberdade de expressão, eleições frequentes, existência de partidos políticos, respeito às minorias, acesso à informação e liberdade para formação de organizações, entre outras.
No Brasil, em que pese tenhamos avançado bastante no campo jurídico, sabemos que ainda há muito a fazer no campo prático, quando falamos por exemplo de questões como equidade de gênero e raça, inclusão e representatividade à população LGBQTIAPN+, às questões das desigualdades econômicas, dentre tantas outras. Seria bastante razoável, pensarmos que em um governo democrático, poder-se-ia implementar e fortalecer políticas públicas que redistribuam renda e desconcentrem as riquezas. Alguns autores tem assinalado que conforme as desigualdades aumentam, aumenta também a influência dos mais ricos sobre as políticas públicas.
Para um sistema democrático estável é essencial que as pessoas compreendam, não só, os princípios democráticos da tomada de decisão, mas que participem neste sistema, que estejam conscientes tanto dos seus direitos, como de seus deveres e responsabilidades nas esferas pública e privada. O fortalecimento da democracia depende de uma participação ativa e igualitária dos cidadãos que vá muito além do exercício do voto.
Charles Tilly (2013) (3) reforça que uma das variáveis que deve ser considerada para o fortalecimento dos processos democráticos é a redução das desigualdades sociais, de modo que, de acordo com o autor, é certo dizer que as ações de promoção de desenvolvimento humano podem influenciar os processos de aprofundamento democrático, quando alcançam o objetivo de reduzir as desigualdades sociais.
Assim, nos cabe atuar coletivamente, no papel e na responsabilidade de organização da sociedade civil, para promover uma sociedade menos desigual, mais justa, mais sustentável, mais próspera e em consequencia mais sustentável.
Precisamos atuar complementarmente – governos, empresas e sociedade civil – para promover as condições básicas para a paz; a erradicação da extrema pobreza; o enfrentamento da fome; a redução das desigualdades; a promoção de educação de qualidade e da saúde e do bem estar de todos os viventes; a igualdade de gênero; o trabalho decente e o crescimento econômico; questões climáticas; os conflitos e as crises internacionais; dentre outras.
Dupas (1998) (4) aponta que, somente a partir de uma ação conjunta dialogal, e sob a perspectiva de complementariedade, entre atores públicos, privados e organizações da sociedade civil, é que poderão se encontrar soluções que sejam efetivas para tais questões que são atualmente vivenciadas.
Nesse sentido, o papel da sociedade civil organizada, estruturando pleitos, consolidando narrativas na arena pública e fomentando uma nova modelagem de atuação é preponderante, pois dada suas características, ela possuiria a capacidade de contemplar uma multiplicidade de indivíduos, considerando-os em sua pluralidade e diversidade.
O Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, avaliação anual sobre a situação do desenvolvimento humano no mundo, de 2002 é intitulado “O aprofundamento da democracia num mundo fragmentado” (UNITED NATIONS, 2002) (5) e aponta que: “para que as políticas e as instituições políticas promovam o desenvolvimento humano e protejam a liberdade e a dignidade de todas as pessoas, há de se ampliar e consolidar a democracia” (UNITED NATIONS, 2002, p. 1).
Norberto Bobbio (2000) (6), por sua vez, destaca alguns pontos que permanecem como desafios para a consolidação do modelo democrático e que se apresentam como questões para o futuro da democracia: a sobrevivência de determinadas oligarquias; o espaço limitado nos quais se exercem poderes que tomam decisões vinculatórias a um inteiro grupo social; o poder invisível; a educação dos cidadãos para o exercício da prática democrática. Vale sublinhar, conforme assinala o autor que: “A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo” (BOBBIO, 2000, p. 19).
Além desses apontamentos feitos por Bobbio quanto aos desafios para as democracias contemporâneas, outros autores fazem apontamentos importantes que devem aqui ser trazidos à baila: dissociação entre justiça política e justiça social (THOMPSON, 1998) (7); emprego de estratégias que visam beneficiar perspectivas individualistas ou de segmentos por meio de recursos do estado, em detrimento ao interesse público (FUNG e WRIGHT, 2003) (8); crescente desconfiança dos cidadãos nos sistemas politicos (WARREN, 1999; GASTIL, 2000) (9).
A democracia contemporânea é, nas palavras de Bobbio, a “sociedade dos cidadãos”, noção que diz respeito à ampliação e ao alargamento dos direitos civis, políticos e sociais. Esta “sociedade dos cidadãos” é conceituada por Bobbio, também, como “a democracia do poder visível” ou “o governo do poder público” (BOBBIO, 2000).
É sob este arcabouço teórico que o CIEDS vem conduzindo suas estratégias e ações, tendo a certeza de a defesa cotidiana da Democracia é uma responsabilidade de todo cidadão e especialmente de toda organização da sociedade civil.
Em iniciativa pioneira, estamos implementando no Ceará, em parceria com o SENAC e a UNIPACE - ALECE, a Escola de Liderança, Governança e Democracia, que tem como missão: “formar líderes conscientes de suas responsabilidades como cidadãos e como agentes de transformação global para um mundo mais sustentável e próspero. ” E como visão: “a democracia fortalecida e garantida a partir de estratégias de governança, processos formativos e engajamento cívico da sociedade civil”.
A Escola de Liderança, Governança e Democracia é uma estratégia que contribui para o fortalecimento das instituições, a formação de líderes e cidadãos e a promoção de uma governança mais eficiente, transparente e responsável. Atualmente composta por 4 grandes eixos formativos: Gestores Presentes; lideranças do futuro; Liderança e igualdade de gênero: mulheres 2030; e associativismo 2.0 e gestão.
Essa ação e todas as outras ações do CIEDS, assim como nossa adesão ao Pacto pela Democracia e Pacto Global, corroboram uma trajetória rumo à nossa visão: Um mundo mais equitativo, mais democrático, mais sustentável e com maior e melhores oportunidades sociais e econômicas para todos.
(1) PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-first century. Londres: The Belknap press of Harvard University press, 2014.
(2) SANTOS, B. S.; AVRITZER, L. Para ampliar o cânone democrático. In: ______(org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 678p, 2009.
(3) TILLY, Charles. Democracia. Tradução de Raquel Weiss. Rio de Janeiro : Petrópolis. Ed. Vozes. 2013
(4) DUPAS, Gilberto. A lógica econômica global e a revisão do Welfare State: a urgência de um novo pacto. In: Estud. av. vol.12 no.33 São Paulo May/Aug. 1998
(5) UNDP 2002. Human Development Report 2002. Deepening democracy in a fragmented world. United Nations, Development Programme (UNDP), Nova York.
(6) BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 8. ed. rev. ampl. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
(7) THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes. 1998.
(8) FUNG, ARCHON e WRIGHT, Erik O. (eds.). Deepening democracy: institutional innovations in empowered participatory governance. (Real Utopias Project). London: Verso, 2003.
(9) GASTIL, J. By Popular Demand: Revitalizing Representative Democracy Through Deliberative Elections. Berkeley, CA: University of California Press, 2000.