Fábio Muller Diretor Executivo
Mayra Polizel Gerente de Expansão
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Desafiando e atuando no rompimento de estruturas de desigualdades sociais

Artigo
15 abril 2023
Desafiando e atuando no rompimento de estruturas de desigualdades sociais

É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este Sol
Para essa escuridão

Trecho da música Divino Maravilhoso de Caetano Veloso  

Aconteceu entre os dias 12 e 14 de abril no Memorial da América Latina em São Paulo, o 12° Congresso do GIFE - Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, fundado em 1995 reúne atualmente uma rede de mais de 160 associados. O GIFE é uma associação de  sociais privados do Brasil, sejam eles institutos, fundações ou fundos familiares, corporativos independentes ou empresas. O GIFE articula um ecossistema que fortalece e catalisa o campo da filantropia e do investimento social privado no Brasil, contribuindo para que a mobilização de recursos privados para fins públicos seja mais ampla e efetiva.

Em sua décima segunda edição e com a temática “Desafiando estruturas de desigualdade” o GIFE faz uma convocatória aos Institutos, Fundações, Empresas, Organizações e Governos a atuarem de forma célere, urgente e complementar para romper com as estruturas de desigualdade social, econômico e política que assolam nosso país e tantos outros países do planeta. Lembrar que o verbo “desafiar” pressupõe enfrentamentos, rompimentos de paradigmas, vieses inconscientes e reparações históricas.

O Evento contou com mais de 1.000 participantes, representantes de todos os campos setoriais e de todos os cantos do Brasil. 

Acervo GIFE - Foto de Dener Alcardi

 

Para iniciarmos essa reflexão nos remetemos ao Relatório produzido pela Oxfam e lançado em janeiro de 2022, “A Desigualdade Mata”. O Relatório, que faz uma breve análise num período pós pandêmico, traz dados alarmantes e bastante preocupantes que afetam diretamente os grupos mais pobres e as minorias ao redor de todo o mundo.

Segundo informações do relatório, no auge da pandemia, enquanto as pessoas passavam fome, encontravam diversas dificuldades financeiras e tiveram familiares e amigos falecendo pela Covid-19, as pessoas mais ricas vislumbraram uma oportunidade de ficarem ainda mais ricas: a riqueza dos 10 homens mais ricos dobrou, enquanto a renda de 99% da humanidade está pior.

O relatório destaca ainda o quão preocupante é a desigualdade nas sociedades e que a própria desigualdade contribuiu para a morte de pelo menos uma pessoa a cada quatro segundos, todos os dias, gerando a morte de pelo menos 21.300 pessoas/dia; ao mesmo tempo, um novo bilionário foi criado a cada 26 horas desde o início da pandemia. Enquanto isso, cerca de 17 milhões de pessoas morreram por causa da Covid-19,  uma perda em uma escala nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial.

Outro forte dado trazido pelo relatório relaciona-se à violência de gênero. Estima-se que a violência de gênero aumentou, em média, cerca de 20% durante os períodos de lockdown, o que significa que, para cada três meses de lockdown, haveria mais 15 milhões de casos de violência doméstica. Isso equivale a cerca de um terço do progresso que poderia ter sido feito até 2030 para acabar com a violência de gênero sendo perdido para a pandemia.

No que tange à agenda climática, assinala-se que o 1% mais rico da humanidade é responsável por duas vezes mais emissões que os 50% mais pobres, e que até 2030 suas pegadas de carbono serão, de fato, 30 vezes maiores do que o nível compatível com a meta de 1,5°C do Acordo de Paris. A OMS estimou em 2014 que as mudanças climáticas matariam cerca de 231.000 pessoas por ano em países de baixa e média renda até 2030, e há evidências de que essa estimativa foi muito conservadora.

No Brasil, as coisas não são muito diferentes: O país permanece no ranking de uma das maiores desigualdades sociais e de renda do mundo, segundo estudo lançado pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, autor do bestseller "O Capital no Século 21", entre outros livros sobre o tema. Alguns aspectos são alarmantes: 

 

  • (a) os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total; 
  • (b) Os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos; 
  • (c) a metade mais pobre no Brasil possui menos de 1% da riqueza do país; 
  • (d) o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira.

 

Além disso, existem outros aspectos como o agravamento da violência e dos grupos armados, a apatia política, o racismo, a homofobia, a intolerância religiosa,  a falta de confiança nos governos, suas instâncias e políticas públicas, a disseminação de notícias falsas - desinformação e o recrudescimento do capital social nacional. 

Quando olhar para a questão da fome e insegurança alimentar, também encontramos dados alarmantes: o Brasil vive, hoje, o nível mais alto de insegurança alimentar desde 2006. Ao mesmo tempo em que dados do EMBRAPA apontam que não deveríamos ter fome em nossa nação, haja vista que nossa produção agrícola e pecuária seria suficiente para alimentar quatro vezes o número da população brasileira. 

Tem gente com fome
Tantas caras tristes
Querendo chegar em algum destino
Em algum lugar
Sai das estações
Quando vai parando
Começa a dizer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer

Tem Gente com Fome - Ney Matagrosso  

O saudoso e grande ativista social Betinho dizia que a fome tem pressa. E a equipe atual da Ação da Cidadania assevera hoje que não existe Agenda 2030 ou ODSs que serão de fato alcançados, caso não haja uma erradicação da fome e da pobreza. 

Foi sob a égide dessa rotunda que começamos o diálogo no 12° Congresso do GIFE - como devemos nos desafiar, reconhecendo nossos lugares de fala e de privilégio e rompermos com as estruturas de desigualdade social que marcam nossa história. Será que temos feito o suficiente na velocidade adequada?

Esse foi para nós um dos principais pontos: o senso de urgência - não podemos mais procurar culpados ou salvadores, precisamos agir dialogicamente, complementarmente e enfrentar as desigualdades estruturais que nos marcam. 

Olhar para a história do Brasil e reconhecer que tivemos um processo de colonização, baseado numa perspectiva eurocêntrica e de branquitude, que desconsiderou o “outro” - em especial, o índigena, o negro e as mulheres.  E que, agora, precisamos nos “decolonizar”, reparando e reconhecendo os erros históricos da nossa nação. É preciso reconhecer a centralidade do racismo como pilar central das desigualdades sociais brasileiras. 

O Brazil não conhece o Brasil | O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti, Liana, alamanda, ali, alaúde
Piau, ururau, aki, ataúde, Piá-carioca, porecramecrã
Jobim akarore, Jobim-açu, Uô, uô, uô
Do Brasil, SOS ao Brasil
Do Brasil, SOS ao Brasil
Do Brasil, SOS ao Brasil

Querelas do Brasil, Elis Regina     

É importante rememorar os ensinamentos citados durante o Congresso da Professora Adailsa Sposatti, que assinala que “equidade é o reconhecimento e a efetivação, com igualdade, dos direitos da população, sem restringir o acesso a eles nem estigmatizar as diferenças que conformam os diversos segmentos que a compõem. Assim, equidade é entendida como possibilidade das diferenças a serem manifestadas e respeitadas sem discriminação; condição que favoreça o combate das práticas de subordinação ou de preconceito em relação às diferenças de gênero, políticas, étnicas, religiosas, culturais, de minorias, etc.” (SPOSATI, 1996).

Lembrar que a luta pela reconquista democrática brasileira, marcada pela promulgação da Constituição Cidadã de 1988,  representa não só a luta por um sistema político, mas uma luta cotidiana contra as desigualdades sociais. Cida Bento, em brilhante fala no evento, apontou: “A desigualdade é o oposto da democracia”. 

Observar que vivemos um período e flertamos com modelos autocráticos de poder que colocaram nossa democracia e tantos outros direitos duramente conquistados em cheque. O que nos faz asseverar que a defesa da democracia é uma luta que se faz diuturnamente e que deve ser feita nas comunidades, onde o senso de coletividade deve ser fortalecido. Mas observar, também, que vivemos novos tempos, carregados de esperança, mas que não podemos esmorecer nessa chance histórica que temos de interrupção do processo de autocratização brasileira. 

O livro “Como as Democracias Morrem”, de Stevan Levitsky e Daniel Ziblatt, é uma produção fundamental para os dias atuais, não por acaso ele foi Best-Seller do New York Times logo após sua publicação. Os autores evidenciam, por meio de casos que, na atualidade, os sistemas democráticos são corrompidos por meio da perversão do processo legal, ou seja, o governo legitimamente eleito subverte o sistema que o levou ao poder para a construção de modelos autocráticos. 

Os autores demonstram que por diversas vezes demagogos populistas aproveitam o clima de insatisfação de países em crises, geralmente ocasionadas por tensões econômicas ou conflitos sociais para apresentarem discursos antiestablishment, ganharem a confiança do povo e se elegerem, ao passo em que se elegem, subvertem o modelo democrático, partindo de quatro principais pontos: 

 

  • (a) rejeição das regras do jogo democrático; 
  • (b) negação da legitimidade de adversários políticos; 
  • (c) ser tolerante ou encorajar a violência; 
  • (d) restringir liberdades civis de oponentes ou a liberdade de imprensa. [qualquer semelhança é mera coincidência, ou não].

 

Hoje vivemos em um país dividido, fruto da desconfiança, dado que por vezes, políticos, redes sociais e a imprensa sensacionalista vende a perspectiva conflituosa da polarização, que reforça a desconfiança e aumenta a divisão. Vivemos um momento em que o ódio e a violência tem nos perpassado cotidianamente. 

Precisamos urgentemente reforçar a cultura de diálogo saudável e construção de pontes; fortalecer identidades compartilhadas; fomentar o senso de pertencimento à comunidade, ao território; priorizar uma educação civilizatória; apresentar uma defesa irrevogável da democracia  romper radicalmente com o racismo, a homofobia e outras perspectivas discriminatórias, mas especialmente romper o nosso meda da diversidade, o medo do outro; olhar para nós mesmos e pensar que modelos nós estamos reproduzindo; olhar para as juventudes e integrá-las nos processos decisórios; participar política e ativamente, fomentando uma política com empatia, como defende a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco; incluir uma perspectiva de sustentabilidade moral, ou seja, que as oportunidades sejam iguais para todos e que não se constituam em privilégios; impulsionar ações ASG, ou ESG, com foco para o âmbito social; promover e difundir uma cultura de paz e por fim, mas não menos importante, retomar o encantamento pela democracia que nos fazia bradar por um país livre, justo, equitativo e igualitário nos idos dos anos 80. 

Além disso, é necessário reforçar com os grandes filantropos a importância do grandmaking para construção de um novo pacto social que considere a complementariedade das ações, a potência dos territórios, a urgência da questão e o reconhecimento das lutas do povo negro, da população LGBTQIAP+, das mulheres, das juventudes. Enfim, dos outros, que há tanto tempo são invisibilizados em nossas histórias. A solução para as desigualdades estruturais virá por meio de  políticas públicas eficazes e, assim, empresas e sociedade civil organizada precisam atuar para fortalecer e incrementar o impacto dessas políticas continuadamente.  

No CIEDS, desde 2016, viemos externando nossa preocupação com o engajamento cívico e comunitário da população brasileira. Em texto publicado à época, destacamos que “Para um sistema democrático estável é essencial que as pessoas compreendam, não só, os princípios democráticos da tomada de decisão, mas que participem neste sistema, que estejam conscientes tanto dos seus direitos, como de seus deveres e responsabilidades nas esferas pública e privada. O fortalecimento da democracia depende de uma participação ativa dos cidadãos que vá muito além do exercício do voto.  Uma sociedade engajada civicamente é aquela em que pessoas e instituições possuem as competências e habilidades para comprometer-se com mudanças positivas na vida social e política, de forma corresponsável e cidadã.”

E, assim, destacamos algumas práticas institucionais do CIEDS que caminham de forma paralela aos diálogos que tivemos nesses três dias:

 

  • Engajamento e articulação à campanhas e objetivos públicos: Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, sendo signatários e promotores do Pacto Global; Agenda Rio 2030; Pacto pela Democracia; Virada ODS em São Paulo, dentre outros;  
  • Difusão de mecanismos de participação, monitoramento e engajamento político: Politize!; dito e feito; operação serenata do amor; candidatos online; Sr. Cidadão; Ranking dos Políticos; latinobarômetro; newsletter incansável; jogo da política; app cívico; mudamos; dentre outros.   
  • Promoção de campanhas que instruem e incentivem os diversos públicos ao engajamento; 
  • Promoção de mecanismos de diálogos horizontalizados e com foco nas convergências; 
  • Promoção do voluntariado e da participação cidadã; 
  • Fomento e engajamento em ações promotoras do bem comum e da cultura da paz;
  • Estratégias de fortalecimento de organizações de base comunitária, em especial organizações de povos originários, de quilombolas e de negros;
  • Uma ação que seja feita “com” os públicos e não apenas “para” eles;
  • O fortalecimento de uma ação intersetorial entre as políticas públicas e o investimento social privado existentes no território;
  • A difusão de perspectivas anti racistas e não-discriminatórias, por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, nacionalidade, atuação profissional, religião, faixa etária e situação migratória;
  • Ampliação de repertório dos públicos internos e externos para que tenham condições de levar adiante, no contexto de suas atuações nos projetos, a promoção e ampliação do engajamento cívico;
  • Fortalecimento de nossa atuação em Conselhos e outras instâncias para contribuir para que esses espaços sejam fortalecidos;
  • Atuação para e com as juventudes, fomentando o protagonismo juvenil, o e engajamento na gestão pública, promovendo a inclusão produtiva de jovens, suas famílias e impulsionando os territórios;
  • Engajamento nos territórios de atuação dos projetos, à redes e fóruns visando à promoção da participação;  
  • Realização de ações afirmativas na seleção de novos profissionais e formação de novas lideranças, considerando as múltiplas diversidades que compõem as equipes da organização;
  • Tomada de decisão levando em consideração o impacto que causará na instituição como um todo;  
  • Disseminação para os parceiros dos valores Institucionais. 

 

Portanto, esses três dias de participação no 12° Congresso GIFE nos desafiaram a pensar e refletir sobre  nossas tecnologias sociais, modelos de implementação e operacionalização de programas e projetos no campo de uma grande instituição da sociedade civil brasileira. Nos confirma que muitas das nossas hipóteses e que nossas estratégias de atuação estão alinhadas às demandas de nossa nação. 

Saímos daqui esperançados e desafiados. 

Podemos sorrir | Nada mais nos impede
Não dá pra fugir | Dessa coisa de pele
Sentida por nós | Desatando os nós
Sabemos agora | Nem tudo que é bom vem de fora
Arte popular do nosso chão | É o povo quem produz o show e assina a direção

Coisa de Pele, Jorge Aragão    

Acervo GIFE - Foto de Dener Alcardi