Fábio Muller Diretor Executivo
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Humanidade Radical: a ternura como resistência em tempos de automatismo

Artigo
8 outubro 2025
Humanidade Radical: a ternura como resistência em tempos de automatismo

Este ensaio é uma pausa, ao menos uma tentativa de pausar. Um espaço entre ruídos. Uma fresta aberta para respirar e buscar sentido num tempo que gira veloz demais.

Há tempos em que o mundo parece perder o fôlego. Como se tudo corresse depressa demais, longe demais, para que o humano acompanhe. É como se o coração do mundo batesse rápido demais para caber no peito humano.

Começo sinalizando que quando a IA sugeriu ‘otimizar’ este trecho inicial, apagando as metáforas, entendi que sua eficiência é também sua cegueira. A linguagem tem corpo. E metáfora é carne.

Tudo parece indicar que vivemos um tempo em que a desesperança encontra terreno fértil. O descrédito nas instituições, a polarização política, o colapso ambiental, a revolução tecnológica, as persistentes desigualdades sociais e a sensação de solidão que cresce à sombra de tudo isso nos colocam diante de um desafio ético e existencial profundo: como manter a esperança na humanidade?” “Como seguir acreditando na política, na solidariedade, no coletivo, quando tudo ao redor parece desabar?”

“A paz não é um destino, mas um caminho construído passo a passo.” Nêgo Bispo
(Antonio Bispo dos Santos, 1955-2020): intelectual quilombola que articulou saberes tradicionais e crítica anticolonia

Em um mundo que vem sendo cada vez mais moldado pela lógica binária da tecnologia, em que tudo parece ser reduzido a números, algoritmos e respostas rápidas, a busca por uma humanidade mais complexa e profunda parece se tornar o desafio mais urgente. 

E se os algoritmos, ao nos reduzirem a dados, nos dessem de presente justamente o que não podem calcular? A humanidade que insiste em escapar às categorias — o riso que desarma, o silêncio que comunica, o afeto que não se deixa otimizar. Não se trata de negar a tecnologia, mas de desconfiar dela o suficiente para lembrar: somos mais estranhos, mais imprevisíveis e mais belos do que qualquer código pode capturar.

A sociedade contemporânea, em sua maioria, insiste em simplificar, em dividir a realidade entre opostos: certo e errado, sucesso e fracasso. No entanto, essa visão dualista não é (e nem precisa ser) compatível com a riqueza da nossa experiência humana, que está sempre repleta de nuances, de matizes, de contradições e possibilidades não exploradas. E se a sociedade não simplificasse, mas fosse simplificada por sistemas que lucram com a divisão?

Este ensaio, escrito em colaboração com múltiplas inteligências artificiais, por opção, e em um diálogo crítico, filosófico e argumentativo, parte dessas inquietações. Mas, mais do que buscar respostas absolutas, propõe perguntas provocadoras. Porque talvez o que mais precisemos agora não sejam certezas, mas convites ao reflexionar, sentir, ao pensar, ao ver.

A opção de escrever com múltiplas inteligências artificiais nasce tanto da curiosidade quanto da provocação: o que pode emergir do encontro entre uma sensibilidade humana – afetiva, histórica, encarnada – e uma máquina que simula linguagem e pensamento, mas que não sente? Ao longo do processo, houve discordâncias, incômodos, reescritas e aprendizados. Escrever com IA foi também um modo de tensionar os limites da autoria, da escuta e da criação em tempos de automação e pressa.

Proponho uma reflexão sobre a necessidade de resgatar uma humanidade radical, que reconheça e abrace a complexidade da vida.

 

A Lógica Dualista e a Busca pela Complexidade

A contemporaneidade tornou a lógica dualista predominante e hegemônica. A política, as relações sociais e até mesmo a maneira como nos entendemos são frequentemente reduzidas a dois polos opostos. No campo da ciência, a tecnologia que molda nosso cotidiano parte da lógica do 0 e 1 — uma linguagem binária que, embora eficiente, não comporta as camadas, os silêncios e os desvios que nos fazem humanos. 

A lógica do 0 e 1 não apenas estrutura códigos, mas invade nossas vidas: nas redes sociais, somos 'seguidores' ou 'haters'; nos aplicativos de encontro, 'match' ou 'descarte'; na política, 'nós' ou 'eles'. E assim, perdemos os tons de cinza que me parecem fazer a vida valer a pena.

Se há algo que a vida nos ensina, é que o mundo não é composto apenas de dualidades. As emoções humanas, os caminhos que trilhamos e as realidades que habitamos estão sempre imersas em um mar de (im)possibilidades, onde o certo e o errado não são absolutos, mas contextuais, temporais, fluidos.

É nesse espaço da complexidade que se vislumbra a possibilidade de uma nova humanidade. Quando abandonamos o desejo de classificar tudo em termos de certo ou errado, abrimos espaço para perguntas mais profundas, para a dúvida, para a busca constante de entendimento. Parece-me preliminarmente que uma das chaves para isso está em aceitar que a verdade não é uma linha reta, mas uma série de camadas, de diferentes perspectivas que se complementam e se entrelaçam.

“Se a estrada é longa, é porque há muito a se aprender pelo caminho.” Nêgo Bispo

 

Humanidade Radical: Uma Forma de Viver e se Conectar

A humanidade radical que proponho, aqui nesse ensaio, não é apenas uma resposta política ou filosófica. Ela é uma maneira de viver, de se conectar com os outros e com o mundo. E, para compreendê-la, podemos inspirar-nos em duas fontes que nos oferecem uma visão de mundo muito distinta da lógica ocidental moderna: os povos originários e a infância.

Muitos povos originários, em suas diversidades, com suas filosofias baseadas na interdependência e no respeito à natureza, frequentemente nos lembram que a vida não é algo a ser conquistado individualmente, mas uma experiência compartilhada. Eles nos relembram que o ser humano como parte de um todo maior, em constante diálogo com o ambiente e com os outros seres vivos - — ainda que essa visão não seja homogênea nem imune a conflitos. A coletividade, para eles, não é apenas uma virtude, mas a base da existência humana. Ao voltar os olhos para esses saberes ancestrais, podemos reavivar uma compreensão mais integrada e orgânica da vida, uma vida que não é regida pela competição, mas pela colaboração, pelo cuidado mútuo e pelo respeito.

“O rio nunca corre sozinho; carrega consigo as histórias do mundo.” Nêgo Bispo

Já a infância, com sua liberdade e criatividade, oferece uma oportunidade única de reconectar com o que há de mais genuíno em nós. A infância não precisa ser vista exclusivamente como um momento de pureza ou idealização, mas como uma fase em que a criança tem a chance de ser quem realmente é, sem as imposições e expectativas da sociedade adulta. Ao permitirmos que a criança brinque, experimente e explore o mundo de maneira espontânea, nos abrimos a um jeito mais fluido de viver, onde o essencial não está nas regras ou no controle, mas na possibilidade de expressão autêntica.

Esse olhar sobre a infância nos desafia a garantir que a criança que existe dentro de nós não seja sufocada pelas pressões externas. Podemos cultivar essa parte nossa que é curiosa, livre para experimentar, que se joga nas possibilidades sem medo de errar, que encontra alegria nas pequenas coisas. Permitir que essa criança emerja é um convite à leveza, à descontração, à busca constante por novas maneiras de viver e de se relacionar. 

Ainda que me questione: a infância é mesmo livre? ou só é livre a infância que a adultice consente, rotula, limita? Permite existir?

A liberdade da infância, muitas vezes, me parece mais uma ficção seletiva: enquanto crianças brancas brincam, crianças negras são adultificadas; enquanto meninos exploram, meninas são ensinadas a se conter. A pergunta então se desdobra: qual infância temos o privilégio de resgatar?

 

Autonomia e Coletividade: Resgatando a Humanidade

Temos sido constantemente encorajados a buscar a autonomia, a independência e o sucesso individual. O conceito de "autossuficiência" se tornou um dos maiores valores da sociedade contemporânea, e com ele, a ideia de que a felicidade e o sentido da vida podem ser encontrados em projetos pessoais e isolados. E se a autossuficiência não fosse um valor, mas uma armadilha? Uma ficção que nos isola justamente quando mais precisaríamos de redes? 

Há indícios cada vez mais visíveis de que esse modelo individualista, centrado na autossuficiência, talvez não dê conta de sustentar uma vida plena — os crescentes índices de sofrimento psíquico parecem ecoar esse esgotamento. Ele nos distancia do que me parece realmente essencial: a coletividade, o cuidado mútuo, a solidariedade.

Não se trata de uma utopia inalcançável. Há práticas concretas de humanidade radical em gestos simples: saber o nome do vizinho, participar da reunião de condomínio, envolver-se com a associação de bairro. Voltar a brincar. Cozinhar para os amigos. Conversar sem pauta. Essas experiências simples são, ao mesmo tempo, resistências ao cinismo generalizado e afirmações de vida coletiva. Talvez seja hora de resgatar o sentido político do afeto.

Quando falo em humanidade radical, falo de um desejo — não de uma realidade universal. Há corpos que nunca puderam se permitir ser ‘radicalmente humanos’ sob a violência do racismo, do capacitismo, da lgbtfobia, do feminicídio. Talvez a resposta esteja na escuta – não a escuta performática, mas a que se faz dando visibilização, como ensina, Nêgo Bispo: 

“No silêncio da mata, escuto as vozes dos meus ancestrais.” Nêgo Bispo

Essa transição do indivíduo para o coletivo não significa perder autonomia, mas perceber que ela só se realiza verdadeiramente quando estamos em relação com o outro, quando nossos projetos de vida se interconectam e se alimentam mutuamente.

 

Polarização Política e a Humanização Radical

O atual cenário político e social tem sido dominado pela polarização, onde as pessoas são forçadas a se posicionar de um lado ou de outro, muitas vezes sem considerar as complexidades das questões ou as nuances das opiniões. Em um mundo polarizado, onde a empatia e o diálogo se perdem, a capacidade de se conectar com o outro se esvai, e as soluções coletivas tornam-se mais difíceis de alcançar. A polarização política, portanto, é uma manifestação dessa lógica dicotômica, binária, dualista que permeia nossa cultura. 

Será a polarização um sintoma ou uma estratégia? Quem ganha quando perdemos a capacidade de dialogar?

É nesse contexto que a humanização radical se torna uma possibilidade urgente. Ao adotar uma postura de humanização radical – que acolhe as diferenças e se recusa a reduzir a complexidade a respostas fáceis e binárias – podemos começar a reconstruir o tecido social, criando pontes entre os opostos e abraçando o que nos une.

“A justiça só é plena quando serve a todos, sem distinção.” Nêgo Bispo

Pensar em um projeto de educação radical, como nos ensina Nêgo Bispo – Antonio Bispo dos Santos, líder quilombola, filósofo, educador e poeta piauiense, cujos saberes entrelaçam resistência e ancestralidade – que entremeia com seus ensinamentos esse texto - uma educação que nos ensine a ser cada vez mais humanos, a viver em relação, a cultivar o olhar empático e curioso da criança, a respeitar a sabedoria dos povos originários, a aprender a colaborar e a buscar soluções coletivas. Ousar pensar que verdadeira aprendizagem não está apenas nos livros e nas provas, mas na vivência diária, na prática do cuidado, no exercício da escuta ativa e da troca genuína.

“O que nos faz humanos é a capacidade de sentir e lutar pelo outro.” Nêgo Bispo

 

Tecnologia e Inteligência Artificial: O Convite à Humanização Radical

Insistindo em obviedades, reconhecemos que estamos imersos em um momento de transição, onde a tecnologia e a inteligência artificial estão redefinindo nosso modo de viver. Embora esses avanços tragam uma promessa de eficiência e novas possibilidades, eles também nos desafiam a refletir sobre o que significa ser humano em um mundo cada vez mais automatizado. 

É curioso pensar que este ensaio foi escrito em parceria com múltiplas inteligências artificiais. Em um tempo em que os algoritmos ganham cada vez mais espaço nas decisões que moldam nossas vidas, talvez a resposta mais potente não esteja em resistir à tecnologia, mas em intensificar aquilo que nos diferencia dela: a nossa humanidade. Insolitamente, essa escrita com uma inteligência artificial me levou a refletir sobre o que, afinal, torna uma escrita verdadeiramente humana. 

A inteligência artificial, ao simular linguagem e pensamento, nos confronta com um espelho distorcido: ela reproduz padrões humanos, mas sem corpo, sem história, sem dor ou desejo. Escrever com ela foi um ato de ironia calculada — como confiar a uma máquina a tarefa de nos lembrar do que nos faz humanos? A resposta pode estar justamente nesse abismo. A IA, ao falhar em compreender nuances (como a ironia deste próprio parágrafo), nos revela o que ela nunca poderá ter: a capacidade de sentir o mundo, de errar com graça, de criar significados além da utilidade. Seu maior legado, paradoxalmente, é nos forçar a definir o que não pode ser automatizado: o afeto que nos desmonta, a dúvida que nos mobiliza, a esperança que não cabe em algoritmos. 

Talvez, paradoxalmente, a presença da IA convide a um aprofundamento do que há de mais radicalmente humano em nós, a reconhecer que somos potentes, vulneráveis, contraditórios, emocionais – e que isso não é um problema, mas a própria beleza de ser gente.

 

Conclusão: Um Convite ao Sentir, Pensar e Ver

Sei que o caminho para uma humanidade radical não é fácil, mas me parece  profundamente necessário. E se questionássemos as respostas prontas e nos abrir para as perguntas que realmente importam: como podemos viver juntos de maneira mais justa, mais solidária e mais humana? Como podemos voltar a nos conectar com o outro, não em busca de diferenciação, mas de comunhão? Como podemos descolonizar nossos pensamentos — desfazer-se das ideias impostas que nos afastam das nossas raízes, do corpo, da intuição, da pluralidade - e agir em coletividade, respeitando a sabedoria ancestral e a pureza do olhar infantil?

Este texto não pretende oferecer respostas definitivas — tampouco se coloca como verdade. É, antes, um percurso em voz alta, que busca provocar perguntas, deslocamentos, reaproximações. Isso exige coragem. A coragem de escutar, de brincar, de cuidar, de sentir. A coragem de não desistir do humano.

Um convite para que possamos, juntos, buscar uma humanidade mais radical, onde a coletividade, a escuta e o cuidado nos reconectem com a terra, com o outro e com o tempo.

Que possamos, juntos, cultivar, cunhar  e experimentar esta humanidade radical — não como uma utopia distante, mas como uma prática cotidiana, feita de gestos simples, vínculos profundos e perguntas que nos mantêm vivos.

Por fim, agradeço, com reverência, a Nêgo Bispo, cujas palavras atravessam este texto como sementes de outro tempo possível.

⁠”Aprender, pra mim, é uma pergunta permanente.” Nêgo Bispo

Este texto é uma porta entreaberta. Um gesto de escuta. Uma conversa iniciada no meio do caminho. É um convite a desacelerar, a sentir com mais profundidade, a reaprender a olhar o mundo com curiosidade e afeto. Que ele possa ser um ponto de encontro — entre o pensamento e o afeto, entre a crítica e o cuidado, entre o eu e o nós. Porque, no fim das contas, talvez não seja sobre encontrar um caminho, mas sobre trilhar juntos caminhos possíveis, onde a esperança não seja ingênua, mas radical — como o amor, como a infância, como os rios, como os corpos que insistem em dançar mesmo quando tudo parece ruir.

Sigo apostando que é possível — ainda que às vezes me falte fôlego. E talvez seja justamente nessa fragilidade compartilhada que a humanidade radical se revele: não como certeza, mas como aposta

E se a humanidade radical começar exatamente aqui — na recusa a desistir uns dos outros, mesmo sem garantias?"

Este texto é um convite. Que ele ecoe em gestos, encontros e insurgências do cotidiano.

 

Nota:

Este ensaio nasceu de um experimento incômodo: usar a IA para falar do que ela não pode entender. Se há contradição nisso, que ela seja fértil. Afinal, como Nêgo Bispo ensina, é na fissura que a luz entra — e é nas brechas do sistema que plantamos o novo. 

Foi escrito em colaboração com múltiplas inteligências artificiais, com quem conversei longamente, provocando, discordando, afinando ideias e formas. Essa escolha foi, antes de tudo, política: testar os limites da criação em um tempo em que a técnica parece se impor sobre o sensível. Mas também foi afetiva: descobrir o que pode emergir do entrelaçamento entre uma sensibilidade humana — encarnada, situada, cheia de memórias e desejos — e uma máquina que simula linguagem, mas não sente, como destaco ao longo do texto.

Ao longo da escrita, revisitei textos e autores, me deixei atravessar por vozes e diálogos queridos e conselheiros — entre elas, as palavras de Nêgo Bispo, que ecoam como bússolas. Este texto é meu, mas não é só meu. É feito de encontros: com a IA, com as conversas com amigos, com o leitor, com a infância, com os saberes ancestrais, com um tempo que ainda está por vir.

 

Este texto foi escrito por Fabio Muller, gestor social, pesquisador, cientista político, ator e cozinheiro de panelas grandes. Com colaboração de inteligências artificiais — mas guiado, sobretudo, pelo desejo de imaginar futuros mais humanos. A construção desse texto (ainda que siga em processo) levou aproximadamente quinze dias e contou com a colaboração de outros muitos humanos.