No primeiro andar do Museu Bispo do Rosário, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, Arlindo, de 56 anos, observa com brilho nos olhos quem passa pela porta de entrada. Fica ansioso para mostrar às pessoas algumas de suas obras, que agregam sons, luzes e cores de forma excepcional. São peças de artes plásticas, nas quais ele utiliza suportes e materiais variados, mas principalmente madeira.
Arlindo Oliveira da Silva é morador, há mais de 40 anos, da Colônia Juliano Moreira, local com diferentes unidades de saúde mental cuja gestão é realizada pelo CIEDS em convênio com a Prefeitura do Rio. A área abriga, entre outros espaços, o museu Bispo do Rosário, onde ele expõe seus trabalhos.
Sua voz e expressão firmes parecem mostrar um senhor comum de meia-idade, porém, após poucos minutos de conversa, revela-se sua história excepcional, permeada por adversidades, superação, amor pela vida e pela arte.
Quando tinha 12 anos, sua mãe o deixou na colônia psiquiátrica, alegando que o jovem havia sofrido uma crise e não tinha condições de cuidar dele. Até hoje, ele tem pouco contato com a família – a mãe já é falecida, não tem notícias de seu pai, enquanto os irmãos o visitam com frequência esporádica.
Como efeito da Reforma Psiquiátrica no Brasil, Arlindo e outros pacientes ganharam autonomia para entrar e sair da Colônia em meados dos anos 2000. O local, então, passou a ter o nome de Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, reorientando o modelo de assistência e dando lugar à desinstitucionalização, uma abordagem humanizada, com garantia de direitos, incentivo à autonomia e à reinserção social.
Foi nesse momento que Arlindo decidiu aprender a “se virar” sozinho. Usufruindo da liberdade recém-conquistada, passava horas na rua recolhendo materiais recicláveis e revendia para um ferro-velho próximo. Depois de algum tempo, percebeu que poderia dar outro fim para aqueles apetrechos. Resgatou toda a imaginação contida por anos entre as quatro paredes dos pavilhões da Colônia e depositou em suas criações.
“Comecei com um pedaço de tábua de caixote, tentei fazer algo com aquilo, mas na primeira vez não deu certo. Peguei outro e já comecei a montar uma peça. Então, catei muita madeira, depois construí um avião, depois um barco, depois uma casinha, depois uma capela. Fui me animando a produzir cada vez mais.”
Paralelas à história de Arlindo, aconteceram tantas mudanças na política de saúde mental que o Instituto Juliano Moreira também foi inspirado a não parar. A unidade passou a investir em uma ferramenta cada vez mais usada no tratamento de transtornos psicológicos: a arte. Arlindo integrou o Atelier Gaia, uma das várias oficinas que acontecem no instituto. Ele e seus colegas, também da Colônia, fazem artesanato, pintura e modelagem.
Essas atividades não foram implementadas apenas para servir de mera expressão cultural, mas para atuarem como importantes técnicas terapêuticas. Elas são suportes que contribuem para dar forma às emoções, abrindo lugar para as potencialidades e criatividade de cada um. Os trabalhos produzidos pelos pacientes podem ser observados de modo a permitir um acompanhamento dos processos psíquicos, onde é possível encontrar conexões entre a situação emocional vivida por eles e o que é produzido pelo seu inconsciente, sendo materializado em suas criações.
Em meio a vários itens da exposição, as peças de Arlindo chamam a atenção dos visitantes. A reação deles é mais ou menos a mesma: os adultos lançam um olhar curioso, como qualquer frequentador assíduo de museus, mas quem gosta mais mesmo de suas peças são as crianças.
“Imagino que elas devam adorar, porque tudo que eu faço é bem colorido. Uso também luzes e alguma coisa que faça som, de preferência imitando o objeto real que inspira minhas peças.”
Arlindo conta que suas criações são também uma forma de renda, garantindo um pouco mais de dinheiro durante o mês. Ele já chegou a vender um carrinho por R$150 a uma funcionária pública que visitava a Colônia para um trabalho e resolveu presentear o filho com uma das suas obras em exposição. “Em vez de ficarem expostas, minhas peças vão saindo. Se a pessoa não puder comprar naquele momento, eu reservo o que ela gostou, salvo o número de celular dela e combinamos depois um dia para vir buscar.”
No meio da conversa, ele olha de relance para a imagem de Arthur Bispo do Rosário em um cartaz na entrada. A figura que dá nome ao museu foi um paciente célebre da Colônia Juliano Moreira, onde realizava, assim como Arlindo, diversos trabalhos com materiais rudimentares, transformando-os em justaposição de objetos e bordados. Suas criações fizeram tanto sucesso que ainda hoje, anos depois de sua morte, têm reconhecimento internacional e rodam exposições do mundo todo.
“Eu conheci o Bispo do Rosário, a gente se dava bem, meu quarto era do lado do dele no pavilhão. Acho que tínhamos muito em comum, nós dois fomos tratados como loucos, quando, na verdade, somos artistas incompreendidos.”
Em seguida, Arlindo olha as horas e se despede. Explica que precisa ir até a farmácia, pois se lembrou de que precisa tomar um dos remédios para controlar a pressão. Conta, orgulhoso, que não toma mais medicamentos psicotrópicos. “Eu te falei: não sou louco, minha loucura é ser artista.”