A reforma psiquiátrica brasileira tem início na década de 1980, é um movimento social que reúne profissionais, usuários e familiares dos serviços de saúde mental indignados com as formas de tratamento médico ofertadas às pessoas que apresentavam algum transtorno mental. É um movimento que possui forte lastro internacional, inspirado nas experiências das cidades italianas de Trieste e Gorizia, que, na década de 1960, começaram a adotar novas abordagens terapêuticas para o tratamento dos transtornos mentais.
Entre os séculos VIII e XX, o tratamento dado às pessoas que apresentavam transtornos mentais na Europa e na América era pautado no isolamento social como principal estratégia, sendo aliada aos medicamentos psiquiátricos que tomam profusão na segunda metade do século XX.
Fato é que os tratamentos psiquiátricos desta época não apresentavam quaisquer evidências de melhora dos pacientes e remissão dos sintomas, objetivos para os quais eram supostamente internados nos manicômios. Por trás de uma justificativa médica, existia um processo de higienização social que enclausurava quaisquer pessoas tidas como “degeneradas”, ou seja, incompatíveis com suposta civilização promovida pelo desenvolvimento da sociedade capitalista. Nestes termos, eram internadas nos hospitais psiquiátricos pessoas de toda sorte, como desempregados, bêbados, amputados, pessoas com doenças degenerativas, mulheres que não atendiam aos padrões comportamentais esperados para época e outros. Machado de Assis escreve o conto “o alienista” como sátira da banalidade com a qual alguém poderia ser considerado louco nesta época, trazendo uma potente reflexão literária sobre o que representa a loucura na sociedade brasileira de sua época.
O resultado destes três séculos de internações por todo o mundo foi a criação de uma grande população de pessoas isoladas da sociedade, que, para além dos transtornos mentais (quando os tinham), também haviam perdido parcialmente capacidades de socialização e autocuidado, perdas causadas pelo isolamento social e tratamentos médicos que por vezes muito se pareciam com tortura, como nos casos da lobotomia ou terapia de choque.
No Brasil, foram criadas diversas instituições psiquiátricas para internação dos loucos e degenerados, o primeiro deles foi o Hospício Pedro II, em 1852, mas logo essas instituições se proliferaram, principalmente pelos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
O movimento da reforma psiquiátrica tem como um de seus principais marcos históricos a 1º Conferência Nacional de Saúde Mental, tendo como o lema “por uma sociedade sem manicômios”, realizada em 1987. A partir da década de 1990 experiências de desinstitucionalização e criação de dispositivos de atenção psicossocial de base territorial foram protótipos do que viramos a conhecer como Centro de Atenção Psicossocial e Serviço Residencial Terapêutico.
Em 2001, o Brasil dá uma guinada em direção a reforma psiquiátrica com a promulgação da lei 10.216 e posteriormente a portaria nº 336 do Ministério da Saúde. A primeira decreta o fim das internações psiquiátricas como principal tratamento de saúde para pessoas com transtorno mental, dando preferência aos serviços de base territorial conectados com a comunidade. Já a portaria nº 336 dá origem aos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), os primeiros serviços de saúde mental de base territorial que se estabelecem no Brasil.
Com o tempo, outros dispositivos de saúde mental foram sendo criados, como as Unidades de Acolhimento Adulto e Infantil, que possuem caráter de abrigamento provisório para pessoas com transtorno mental, e o Serviço Residencial Terapêutico (SRT), dedicado a pessoas com transtornos mentais que ficaram por dois ou mais anos internados nos hospitais psiquiátricos. Os SRT são regulamentados pela portaria 3.090 de 2011, que estabelece os critérios e condições de uma Residência Terapêutica.
No município do Rio de Janeiro, o CIEDS começa sua parceria com a secretaria de saúde em 2011, colaborando com a gestão dos Institutos Municipais de Assistência à Saúde (IMAS) Juliano Moreira e Nise da Silveira, e segue, em 2015, com a cogestão dos SRT e, em 2016, com os CAPS da Rede de Atenção Psicossocial do município.
Durante os 12 anos de parceria entre o CIEDS e a prefeitura do Rio de Janeiro, o foco desta relação tem sido no fortalecimento de políticas públicas voltadas para desinstitucionalização. Nesta década de parceria, foi possível qualificar e expandir o trabalho realizado na política municipal do SRT, assim como contribuir com o encerramento dos leitos de longa permanência dos IMAS Juliano Moreira e Nise da Silveira. Isso foi possível por meio de forte investimento dos profissionais de saúde em projetos terapêuticos singulares dos pacientes dos IMAS voltados para o retorno familiar, moradias assistidas - estratégia onde os pacientes passam a morar em residências custeadas por recursos próprios, mas apoiado por profissionais de saúde da RAPS – ou alta para os SRTs.
Em números, o CIEDS contribui neste período para a abertura de 38 novas RTs no município e 1 RT de alta complexidade de cuidados clínicos para pessoas com graves comprometimentos de saúde. Desta forma, ampliou-se em mais de 200 a quantidade de moradores de SRT no município, que hoje são aproximadamente 530 vivendo em 97 RTs. É hoje a maior política de SRT municipal do Brasil. Neste trabalho, estão envolvidos também os profissionais dos CAPS e dos IMAS, totalizando mais de 1.600 profissionais de saúde contratados pelo CIEDS, envolvidos nas ações voltadas para política de desinstitucionalização municipal.
O processo de desinstitucionalização é árduo, visto o histórico das pessoas que viveram por décadas nos hospitais psiquiátricos e lá regrediram drasticamente suas capacidades de socialização e autocuidado. Os profissionais de saúde sustentam este trabalho tecendo redes para ampliação da autonomia dos moradores do SRT. O investimento é intenso em todas as dimensões da vida para potencializar as capacidades humanas das quais dispõem um morador de RT como qualquer outro.
O olhar humanizado, o acolhimento e a disponibilidade dos profissionais de saúde produzem relações de vínculo que resultam em maior comprometimento dos moradores do SRT com seus projetos terapêuticos, para que possam estar de forma plena na vida, como qualquer outro cidadão.
A desinstitucionalização não se encerrou com o fechamento dos leitos de longa permanência dos hospitais psiquiátricos. É um trabalho contínuo, não só com as pessoas egressas dos manicômios, mas também numa transformação social sobre a forma como entendemos o lugar da loucura em nossa sociedade, aceitando as diferenças, os limites e incluindo os sujeitos de maneira a aproveitar suas potências enquanto ser social.
Sobre o autor: Leonardo Moraes é assistente social, especialista em saúde mental e doutorando em saúde coletiva pela UFRJ. Colabora com CIEDS como consultoria de gestão do conhecimento nos projetos voltados para área da saúde.