O nome é favela. Recentemente, o IBGE enfim anunciou o uso do termo no Censo e, agora, o que já era utilizado pela maioria das pessoas é oficial. O que nos perguntamos é: o que muda na realidade destes espaços e das pessoas que lá vivem, sendo agora reconhecidas como aquilo que sempre foram?
Favela foi, durante muito tempo, um termo estigmatizado que contribuiu para fragmentação do território, deixando ainda mais evidentes as desigualdades e reforçando um olhar perverso sobre elas - e os favelados e faveladas. Essa percepção tem mudado à medida que os próprios moradores se apropriam do termo e demonstram que, apesar dos problemas, há muito mais potência, criatividade e talento.
É sob essa perspectiva que lançamos luz para o Parque de Inovação Social, Tecnológico e Ambiental – PISTA, o primeiro e único Parque de Inovação Social do Brasil estabelecido em um ambiente de favela. A comunidade que acolhe a iniciativa é a Rocinha, situada no Rio de Janeiro.
O pioneirismo e a falta de referências tornam, para nós, desafiador e instigante o desenvolvimento de um projeto desta natureza, que busca contribuir para o desenvolvimento e valorização das favelas.
Afinal, favela e inovação cabem no mesmo contexto?
A princípio, favela e inovação parecem termos opostos. No inconsciente da maioria, a inovação é uma atividade restrita às grandes empresas, universidades e países desenvolvidos. Do mesmo modo, as favelas e comunidades continuam a ocupar, em nossas mentes, lugares de escassez, pobreza e problema ainda a ser solucionado.
Fato é que a inovação, essa com a qual interagimos e já nos tornamos dependentes, possui um funcionamento insustentável. Alicerçada por tecnologia, escalabilidade, modelos de negócios e concentrada na elite econômica e intelectual, essa inovação não tem sido suficiente para nos ajudar em uma das questões mais latentes da atualidade: o combate à pobreza e às desigualdades socioambientais.
O paradoxo é que nunca se inovou tanto e tão rápido, ao passo que se aceleram os desafios da desigualdade em todo mundo. O que vemos atualmente é um aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade social e do mapa da fome; catástrofes ambientais cada vez mais frequentes; aumento do número de refugiados climáticos e do racismo ambiental; sem falar da histórica concentração de renda na mão de uma parcela pequena da população mundial.
As alternativas encontradas para frear a forma acelerada como o mundo e as relações (sobretudo ambientais e comerciais) se degradam foram os acordos firmados entre as nações e empresas. Estes culminaram nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS), que apresentam resultados insuficiente em relação às metas estipuladas pelos seus signatários. Dessa forma, enquanto sociedade, nos aproximamos de uma situação sem precedentes conhecida como ponto de “não retorno”, que torna irreversível os danos causados pela ação humana e a capacidade da natureza se regenerar e reduzir os impactos negativos do aquecimento global.
Embora cada país tenha autonomia para definir as estratégias e ações para alcance das metas, é incomum os que considerem os contextos das favelas: seja para que elas contribuam na busca por soluções, ou ainda para que sejam o espaço onde ações para o cumprimento das metas acontecem.
As favelas, que se tornaram símbolo de resistência e têm papel fundamental nesse processo de desenvolvimento sustentável, ainda sofrem com a ausência de políticas públicas para garantir aos seus moradores o direito à dignidade e à cidade.
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Inovação social como política pública na favela da Rocinha: o que é o PISTA
A Rocinha era, até pouco tempo, considerada a maior favela do Brasil e se encontra entre os bairros de maiores PIB do Rio de Janeiro, cercada pela Floresta da Tijuca e o mar de São Conrado. É uma favela com uma intensa dinâmica comercial, cuja atividade econômica é maior que 90% das cidades brasileiras - além de apresentar potencial turístico e um lifestyle que dialoga e contribui para o soft power carioca.
Ignorar as favelas por tanto tempo custou caro ao Rio de Janeiro. Se os serviços públicos básicos de saúde, assistência social, educação, saneamento e urbanização (entre outros) não chegavam ou chegam precariamente, era inimaginável que outras políticas públicas fossem direcionadas para estes territórios: em especial voltadas à produção de conhecimento, Ciência Tecnologia e Inovação (CT&I) e meio ambiente e sustentabilidade.
O mesmo ocorre para os recursos privados que, sob o disfarce de “reputação da marca”, evitam destinar ações de investimento social atrelado aos contextos de favelas - salvo aquelas dentro de suas áreas de abrangência ou por força de cumprimento de medidas compulsórias de ajustamento de conduta. Quanto à natureza dos projetos destinados às favelas pelas empresas, estes continuam apresentando características assistenciais, cujo mérito é inquestionável por essência, mas que padecem da descontinuidade pela necessidade recorrente de recurso, levando a resultados pontuais.
O Rio de Janeiro deu o primeiro passo para quebrar essa lógica ao unir inovação e favela como política pública. Em uma chamada inédita, o Governo do Estado, através da Fundação de Amparo e Pesquisa do Rio de Janeiro - FAPERJ, destinou recursos para o processo de desenvolvimento territorial na Rocinha. O objetivo era incentivar a geração de projetos, negócios e soluções, estimulando a criação de uma ambiência empreendedora e de inovação na comunidade e dando forma a projetos experimentais e de negócios considerando o potencial criativo da Rocinha. Esse piloto foi essencial para a formação das bases do Parque de Inovação Social, à medida que os projetos se desenvolvem e se desdobram.
Inspirado em modelos como Medelín (Colômbia), Santa Rita do Sapucaí (Minas Gerais) e de outros parques científicos e tecnológicos ao redor do mundo que se integram ao território, o PISTA nasce em um formato que respeita a geografia da Rocinha. Com uma estrutura descentralizada, o que o diferencia é sua essência pautada no socioambiental, que considera os fazeres e saberes praticados na comunidade e, sempre que possível, agrega e reconhece tecnologias.
De forma resumida, o PISTA tem como missão gerar tecnologias sociais, desenvolver negócios de impacto e fortalecer a qualificação profissional em temáticas emergentes, atuando como um catalisador junto a rede de agentes que compõem uma quádrupla hélice e tendo os moradores como propulsores deste mecanismo. É a junção destes agentes que determina o sucesso dessa iniciativa e promove a inovação alicerçada na sustentabilidade.
Três das quatro hélices do PISTA estão bem representadas no arranjo destes agentes:
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1. o Governo, principal incentivador da iniciativa por meio da FAPERJ e da Secretaria Estadual de Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro – SEAS;
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2. as Universidades, na figura da PUC-Rio e da UFRJ, que atuam na formação e também no processo de monitoramento e avaliação do impacto desta política pública no território;
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3. e a Sociedade Civil, representada pelo CIEDS como gestor do Parque, e com contribuições de outras organizações, em especial as locais.
A última hélice, representada pelas empresas, é o desafio deste modelo. Em outros parques de inovação e científicos, as empresas geralmente estão inseridas fisicamente nas dependências destes ambientes através dos seus centros de PD&I, ou mesmo com unidades e plantas de produção. No PISTA Rocinha, a forma de interação e integração destas grandes empresas é por meio de suas ações de responsabilidade social, de suas políticas de ESG implementadas neste território ou projetos de inovação.
Como funciona o Parque de Inovação Social, Tecnológica e Ambiental da Rocinha?
O PISTA está estruturado em cinco áreas: Escritório de projetos e negócios, Geradora de negócios, Living Lab, Observatório e Laboratório de saberes. Cada unidade do parque tem um papel específico e complementar nas ações.
Como todo ambiente de inovação, há ainda o desafio de pensar a sustentabilidade econômica para suportar sua operação. Inicialmente, os investimentos das empresas (por meio das ações de Responsabilidade Social, ESG ou mesmo de Termos de Ajustamento de Conduta) e do Governo (por editais, termos de cooperação e chamadas públicas) são formas de viabilizar a operação do PISTA nos primeiros anos. Recursos captados de organizações internacionais com foco no desenvolvimento socioambiental também compõem a proposta inicial.
A aplicação dos recursos é destinada para ações específicas e se concentram em:
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1. geração ou desenvolvimento de negócios de impacto;
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2. experimentação de projetos com foco socioambiental;
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3. e na formação de pessoas.
Dessa forma, o PISTA retroalimenta uma cadeia e um círculo virtuoso dentro da comunidade, onde negócios contratam pessoas, pessoas qualificadas criam projetos experimentais ou empreendem e projetos experimentais viram negócios ou tecnologias replicáveis. Tudo isso é acompanhado pelo Observatório que, além de monitorar, atua também como um think tank e faz ponte entre a Universidade e a favela.
Para estruturar esse modelo e engajar a participação da comunidade na concepção e tomada de decisão das ações do parque, é necessário um modelo de governança compartilhada. A governança deve não só garantir os desejos da comunidade, mas também ser gerida por ela, além de prover para todos os envolvidos a transparência e a evolução do modelo. A governança abriga o pacto entre comunidade e investidores.
A construção do PISTA é resultado de um trabalho que, aos poucos, vem colhendo frutos. Incontáveis visitas, conversas e arranjos ao longo do tempo, muitos aplausos, reconhecimentos e incentivos. No entanto, há barreiras que ainda necessitam ser transpostas, como reduzir a miopia das organizações sobre a favela, romper crenças sobre a inovação em contextos diferentes do que costumamos ver e, ainda, reforçar a compreensão que as favelas são parte da solução para um mundo mais sustentável.
O que tem nos movido, para além de acreditar e ver que é possível? A ousadia e o acolhimento dos que lá na favela passaram a acreditar no parque, tornando o desafio coletivo instigante e prazeroso, mesmo que incerto. Afinal, ousadia e colaboração são componentes essenciais para a inovação e, sejamos francos: isso nunca faltou nas favelas.
Conheça alguns dos negócios do PISTA da Rocinha